Questões controversas relativas ao estado de necessidade
justificante
Controversial issues
related to supporting emergency
Tiago Pires Cotias Villas*
RESUMEN
El estado de
necesidad previsto en el Código Penal como causa
excluyente
de ilicitud, es uno de los institutos más antiguos del
derecho, lo que aún genera innumerables
controversias entre
los autores.
Las divergencias
doctrinarias
se refieren
tanto
a los requisitos objetivos necesarios
para
caracterizar
la justificación, como a
la posibilidad de invocar este instituto
en casos
concretos.
Se puede observar la
invocación del estado de necesidad como defensa, en los casos en que el agente realiza una conducta
típica como consecuencia
de una difícil situación económica en la cual se encuentra, principalmente, en lo que en la práctica se denomina hurto
famélico. Al respecto, existen coincidencias doctrinarias y jurisprudenciales que intentan limitar al máximo la caracterización de
la justificante en estos casos, imponiendo
límites
objetivos.
La posibilidad de invocar
el
estado de necesidad en el caso de
torturas ha
sido un tema debatido y continúa siéndolo
entre internacionalistas y penalistas que discrepan en cuanto a la práctica de la tortura como método
para obtener informaciones en situaciones extremas.
* Graduado em
Direito na Pontifícia
Universidade Católica do Rio
de Janeiro – PUC-Rio
Trabajo recibido el 4/6/2012.
Aceptado 20/11/2012
ABSTRACT
The state of necessity under the Penal Code as exclusionary
because of illegality, is one of the oldest institutes of law and who still has raised many controversies between the
indoctrinators. Doctrinal differences relate both to objectives requirements necessary for the characterization of justifying, that claim
this
Institute in specific cases.
In practice, we can observe the state's claim of necessity
as
a defense in cases where
the agent does the typical conduct due to the difficult economic situation, which is mainly in the
practice of the so-called victimless crimes theft. We can observe
that there are doctrinal and jurisprudential approaches that attempt to limit to the maximum the
characterization of this justifying in
these cases,
imposing limits.
The possibility to claim the state of necessity in the crime of torture has been a theme
currently quite debated between internationalists and penalistas, which differ as regards the
practice of
torture as a method
of obtaining information in
extreme situations.
PALABRAS CLAVES
Estado de necesidad; Excluyentes de ilicitud; Teoría
unitaria; Hurto famélico; Tortura.
KEY WORDS:
State of; Exclusive of objections; Unitary Theory; Victimless Crimes Theft; Torture.
Introdução
O ordenamento jurídico brasileiro prevê
no artigo 23 do Decreto-Lei n 2.848
(Código Penal),
de 7 de dezembro de 1940,
o estado de
necessidade como causa excludente
de ilicitude. Portanto, aquele que praticar conduta típica com o intuito de salvar bem jurídico próprio, ou de
terceiro, em detrimento de bem jurídico alheio de igual ou menor valor,
age licitamente.
Este instituto remonta ao
Direito Romano.
Porém,
em Roma, o estado
de
necessidade estava voltado primordialmente para a propriedade privada. Autorizava-se a lesão de coisa alheia de igual ou menor
valor, a fim de salvar
a própria de perigo. Ao longo da Idade Média, houve maior desenvolvimento deste instituto, se aproximando mais aos
moldes atuais, pois no
Direito Canônico firmou-se o princípio preconizado no brocardo necessitas legem, non habet, que se traduz na idéia de que a necessidade torna lícito aquilo
que a lei declara ilícito.1
É
relevante o estudo desse instituto, devido às inúmeras controvérsias doutrinárias a respeito dos requisitos e da possibilidade de alegação em determinados casos concretos. Do
mesmo modo, a jurisprudência diverge quanto a sua aplicabilidade, especialmente nas situações
em que o agente pratica a conduta
típica em
decorrência das
dificuldades
econômicas as quais está
passando.
Tema atual que
tem gerado controvérsias entre penalistas e internacionalistas, diz
respeito à aplicabilidade do estado de necessidade em crimes de tortura. Esse é um tema muito
debatido no exterior,
mas ainda pouco discutido pela doutrina brasileira.
I -
Estado de necessidade no ordenamento jurídico brasileiro
1.1. Conceito de estado
de necessidade
Ao cometer dolosa
ou culposamente
um fato definido por lei
como crime, o agente
praticou não somente uma conduta típica, como ilícita (também denominada antijurídica
por alguns autores), ao menos que
tenha cometido em determinada
situação a qual a lei o
autoriza ter agido desta forma, ou seja, situação a qual
a lei considera a conduta
como lícita. Tais situações em que a lei afasta a ilicitude
do fato típico
são
denominadas de causas de
exclusão
de antijuridicidade, excludentes de ilicitude, causas de justificação, justificantes
ou descriminantes.
1 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal Comentado. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 74.
Heleno Fragoso ao
definir a antijuridicidade afirma:
“A conduta
típica é, em regra, antijurídica, funcionando a tipicidade como indício
de antijuridicidade. Em conseqüência, a análise da antijuridicidade se resume
ao exame da ocorrência, na realização da conduta típica, de
causas de justificação, que excluam a ilicitude.
Daí dizer-se que a teoria da antijuridicidade é, na prática, uma
teoria do conforme ao direito, pois se trata de saber se a conduta
está ou não justificada.” 2
O artigo 23 do Código Penal3 prevê o estado de necessidade como causa excludente
de ilicitude e o artigo 24 conceitua o estado
de necessidade:
Exclusão
de ilicitude:
Art.
23 - Não há crime
quando o agente pratica o fato:
I -
em estado de necessidade; (...)”
“Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de
perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir- se. § 1º - Não pode alegar estado de
necessidade
quem tinha o dever legal de
enfrentar o perigo. § 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a
pena poderá ser
reduzida de um a dois terços.
2 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.
223.
3 Decreto-Lei n° 2.848, de 7
de dezembro de 1940.
Portanto, no estado de necessidade, há um conflito
entre titulares de bens ou interesses legítimos, no qual um deles ameaçado por
perigo externo, viola
o bem ou interesse
do outro para proteger o seu. Esclarecedora é a
definição de Damásio de
Jesus
acerca do fundamento
do estado
de necessidade:
Tem como fundamento um estado
de perigo para certo interesse jurídico, que
somente pode ser resguardado mediante a lesão de outro. Há uma colisão de bens
juridicamente tutelados
causada por forças diversas, como um fato humano, fato animal, acidente ou forças naturais. Em tais casos, para proteger interesse próprio ou alheio,
o Direito permite a lesão de outro
bem, desde que seu sacrifício seja imprescindível para
a sobrevivência daquele. Se há dois bens em perigo de lesão, o
Estado permite que seja sacrificado um deles, pois, diante do caso concreto, a tutela penal não pode salvaguardar a ambos. 4
Em seguida, o
autor elenca
diversas situações em que
o agente praticou um fato
típico (lesionou um bem jurídico), porém, no caso concreto, está
configurado
o estado
de necessidade,
não há que se falar de crime. Vale
destacar os principais
exemplos:
a) danos materiais produzidos em propriedade
alheia para extinguir um incêndio e salvar
pessoas que se encontram em perigo; (...) d)
subtração de alimentos para
salvar alguém de morte por inanição; e) subtração de salva-vidas de um disputante em caso de naufrágio; f) dois alpinistas percebem que a corda
que os sustenta está
prestes a romper-se; para salvar-se, A atira B num precipício; g) durante um
4 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. 32ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 411.
incêndio, A causa ferimentos em B quando se lança na direção da porta de salvação;
(...) l) caso de antropofagia
entre
náufragos ou perdidos na selva; (...) p)
aborto praticado por médico quando não há
outro meio de salvar a vida da gestante; (...)
r) dois náufragos nadam em direção a uma tábua de salvação; para salvar-se, A mata
B(...) 5
1.2. Teoria unitária
e teoria diferenciadora
A teoria unitária entende
que todo estado de necessidade é causa de exclusão de ilicitude. Segundo esta teoria, tanto a situação em que, para
proteger o seu bem jurídico,
o agente viola outro
de menor valor, como na
situação em que
há a violação de bem jurídico
de valor igual, em ambas as hipóteses estamos diante de uma justificante. Desta forma, Rogério Greco
exemplifica:
Para essa teoria, não importa
se o bem protegido pelo agente é
de valor superior ou igual àquele que
está sofrendo a ofensa, uma
vez que em ambas as situações o fato será
tratado sob a ótica das causas excludentes da ilicitude. A teoria unitária
não adota a distinção entre
estado de necessidade
justificante e estado de
necessidade exculpante. Para
ela, todo estado de necessidade é justificante. Assim, se para
salvar a sua
vida o agente vier a
causar a morte de
outrem, ou mesmo na situação na
qual,
para garantir a sua integridade
física, o agente tiver de destruir coisa alheia,
não importando que a sua vida tenha
valor igual à do seu semelhante, ou que a sua
integridade física
valha mais do que o patrimônio alheio, ambas as hipóteses serão
cuidadas sob o enfoque da exclusão da ilicitude da conduta e não sobre a ausencia da culpabilidade. 6
5JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 414 e 415.
6 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: volume 1, Parte Geral. 11ª ed.. Rio de Janeiro: Impetus, 2009. p.
321 e 322.
A
teoria diferenciadora, que advém da
doutrina alemã, distingue “estado de necessidade
justificante” de “estado
de necessidade
exculpante”. O primeiro é causa
de exclusão de ilicitude, enquanto o segundo não afasta a ilicitude
e sim a culpabilidade. Para essa
teoria, havendo a violação de bem jurídico de
igual (ou mesmo maior) valor do
protegido, estaríamos diante
do estado de necessidade exculpante. Portanto, somente se configura o estado de necessidade justificante quando, para proteger seu interesse jurídico,
o agente viola outro de menor valor.
Logo, quando o agente viola
interesse jurídico de
valor igual, segundo a teoria
unitária, está afastada a ilicitude; por outro lado, segundo a teoria diferenciadora, está
excluída a culpabilidade.
O Código Penal brasileiro adotou a
teoria unitária, considerando todo estado de
necessidade como causa de exclusão de ilicitude,
seja nas situações em que o bem jurídico
protegido é de maior valor
ou igual.
Magalhães
Noronha elogia a adoção da teoria unitária pelo
Código Penal
brasileiro:
“O
Código, a nosso ver acertadamente, considera-o como descriminante: “Não há crime” (art.23). Não age contra a ordem jurídica o que lesa direito de outrem para salvar
o
seu. Sendo ambos
juridicamente protegidos, é certo que a lesão
aos interesses sociais sempre haveria, se o agente não tivesse ofendido o bem jurídico alheio,
porque seria
então
o
seu sacrificado.
Em
situação
tal,
é
legítimo o procedimento da pessoa, pois a lei não lhe pode impor conduta de santo ou mártir,
permitindo a ofensa
a
seu bem-interesse. Não
age
conseqüentemente
contra o direito. É lícita a ação.” 7
7 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Volume 1, Introdução e Parte Geral. 3ª ed.. São Paulo: Saraiva,
1993. p. 185.
II -
Elementos objetivos e
subjetivos
2.1. Perigo
atual
O
artigo 24 do Código Penal afirma
que age
em
estado de necessidade aquele que pratica o fato para
salvar de perigo atual, não provocado voluntariamente, inevitável (não
podia de outro modo evitar), direito próprio ou alheio,
cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. O parágrafo 1º do mesmo artigo ainda prevê que não pode
alegar
tal
excludente de ilicitude aquele
que
tinha o dever legal de enfrentar o
perigo.
Primeiramente, podemos destacar o requisito “perigo atual”. O
Código Penal ao
conceituar a legítima
defesa, no seu artigo 25, prevê que tanto a agressão atual, como a iminente, permitem que aquele que sofre a agressão injusta pratique um
fato
típico. Por outro lado, ao tratar do
estado de necessidade, o texto legal apenas usa a expressão “perigo
atual”, fazendo
surgir divergências
doutrinárias.
Antes de mencionar a posição
da
doutrina, devemos distinguir atualidade de iminência. Perigo atual é “aquele que se apresenta no momento presente”8, ou seja, é o
perigo “concreto, imediato”9. Portanto, quando há uma inundação numa cidade ou um
incêndio em uma casa,
podemos
afirmar que o perigo é atual, concreto, presente.
Por outro lado, o perigo iminente é aquele que está “prestes a se manifestar” 10, em outras palavras, é aquele que tem alta probabilidade de se tornar atual. Portanto, quando uma barragem está quase se rompendo, o que
acarretará
na inundação de toda uma cidade, ou ainda quando está
vazando uma quantidade
imensa
de gás, o que muito provavelmente
acarretará
numa explosão ou incêndio, em ambos os casos o perigo é iminente, tendo
em vista que a inundação, explosão ou incêndio não são atuais, concretos, imediatos, ou seja, ainda
não estão ocorrendo
no momento presente.
8 MESTIERI, João. Manual de Direito Penal, volume I. 1ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 149.
9 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: vol. 1, Tomo II. 4ª ed.. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 272.
10 MESTIERI, João. Manual de Direito Penal, volume I. p. 149.
José Frederico Marques faz uma interpretação literal do texto legal, portanto, exclui a possibilidade
de alegação do estado de necessidade quando o perigo for
iminente: “não se inclui
o perigo iminente porque
a atualidade
se refere ao perigo e
não ao dano, pelo que é evidente que não
pode exigir-se o requisito
da iminência da realização do dano.” 11
Contudo, a doutrina majoritária entende
que, embora o texto legal não mencione, em ambos os casos – perigo atual ou iminente – o sujeito pode alegar
o estado
de necessidade. Nesse
sentido, Assis Toledo afirma ainda que o conceito de atual alberga
a iminência: “perigo é
a probabilidade
de dano.
Perigo atual
ou
iminente (a atualidade
engloba a iminência do perigo) é o que
está prestes a
concretizar-se em um dano, segundo
um juízo de previsão mais ou menos seguro.”12
Vale destacar
os
ensinamentos
de
Magalhães Noronha
que
não se atém
à
conceituação de tais palavras para
definir se a atualidade
do perigo engloba ou não a iminência: “Exigir sempre a efetivação do perigo será tornar impossível à pessoa a proteção do bem jurídico. Não comungamos, dessarte, da opinião de José Frederico Marques, que não
admite
o perigo iminente,
opondo-se, aliás,
à opinião dominante.”13
Portanto, Magalhães Noronha alega que caso o sujeito não possa alegar o estado de necessidade como justificante quando diante de um perigo iminente praticar um fato típico, significa dizer
que o
direito estará tornando impossível a proteção do bem jurídico.
Exemplificando, caso o sujeito tenha
que aguardar o rompimento efetivo da barragem, que está prestes a se romper, para só depois poder furtar um automóvel na tentativa
de fugir da inundação, o direito está tornando impossível o sujeito salvar
sua vida, pois após o
rompimento da represa,
provavelmente não terá mais tempo de alcançar um
local
seguro.
11 MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal – volume II. 1ª ed. atualizada. Campinas: Bookseller, 1997. p. 167.
12 TOLEDO, Francisco de Assis.
Princípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 185.
13 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Volume 1, Introdução e Parte Geral. p. 186.
O mesmo ocorre
no outro exemplo citado acima, pois caso o sujeito
tenha que esperar que o incêndio se torne efetivo ou a explosão se concretize para
poder derrubar uma
porta ou destruir uma janela na tentativa de fuga, alta será a probabilidade de perder sua
vida ou, na melhor das
hipóteses, de ser atingida sua integridade física.
2.2. Perigo não
provocado voluntariamente
O artigo 24 do Código Penal prevê que o sujeito só poderá
alegar estado de necessidade caso a situação de
perigo não tenha sido provocada por sua vontade. O texto legal não deixa claro se
ao
usar a expressão “por sua
vontade” pretende englobar, além do dolo,
a culpa, ou somente o primeiro. O uso de uma expressão pouco esclarecedora por
parte do legislador acarreta
novamente em discussões doutrinárias intermináveis.
A doutrina mais tradicional, como José
Frederico Marques, Nélson Hungria,
Magalhães Noronha e Francisco de Assis Toledo, entende que o sujeito que se colocou
culposamente em situação de
necessidade não pode
alegar a
excludente de
ilicitude; afirma Hungria:
Cumpre que a situação de
perigo seja alheia à vontade
do agente, isto é, que
este não a tenha provocado intencionalmente ou por grosseira inadvertência ou leviandade. Neste último caso, deve entender-se (para
não estreitar demasiadamente
os limites do estado de necessidade, com abstração do instintivo serva te ipsum)
que o agente não só podia e devia ter previsto
o advento do perigo, como também a conseqüente
necessidade de violar o direito alheio.14
No
mesmo sentido, Magalhães
Noronha entende que o direito não pode
permitir que o sujeito,
que atuou de forma ilícita anteriormente, possa praticar um fato típico com a
finalidade de resguardar seu bem
jurídico em detrimento
do interesse
jurídico de outrem:
14 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: vol. 1, Tomo II. p. 274.
“A nós nos parece que também o perigo culposo impede ou obsta o
estado de necessidade. A ordem jurídica
não
pode homologar
o sacrifício de
um direito, favorecendo ou beneficiando quem já atuou contra ela, praticando um ilícito, que até
pode ser crime ou contravenção.” 15
Em sentido contrário, Heleno Fragoso, Régis Prado, Damásio de Jesus, Basileu
Garcia, Rogério Greco entendem que tal expressão não engloba a
culpa, portanto, o sujeito que causou culposamente o perigo,
ao cometer um fato típico para proteger seu bem jurídico estará agindo licitamente, pois agiu em estado de necessidade. Nas palavras de
Heleno Fragoso:
“não
pode invocar o estado de necessidade
quem por sua
vontade provocou o perigo. Essa fórmula refere-se exclusivamente
ao dolo. Pode haver estado de necessidade se o agente causou culposamente a situação em que surge o
perigo.” 16
Damásio de
Jesus faz uma interpretação sistemática do Código Penal chegando à
conclusão de
que “vontade” se refere
unicamente ao dolo, tendo em vista que o próprio Código Penal ao definir o crime tentado, usa a expressão “vontade” como indicativa de
dolo, além de que a culpa exige expressa
referência legal:
Entendemos que somente o perigo causado dolosamente impede que seu autor
alegue encontrar-se em fato necessitado.
Além da consideração de ordem humana, temos
apoio no próprio CP, que define
a tentativa empregando a expressão vontade,
que é
indicativa de dolo. Assim, por meio de interpretação sistemática, analisando a
expressão vontade contida nos dois
dispositivos (arts.
14, II,
e 24), e
sendo
a primeira indicadora de dolo, chegamos à conclusão de
15 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Volume 1, Introdução e Parte Geral. p. 187.
16 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. p. 233.
que só o perigo causado dolosamente
tem força de excluir a alegação justificadora do agente. Além disso, de
acordo com a sistemática do Código, a culpa exige referência expressa. Ora, se o art.
24 silencia a respeito dela,
é porque não
a contempla.17
Por outro lado, o entendimento de que a
culpa está englobada
pela expressão “por
sua vontade” também traz problemas práticos, como cita o próprio defensor dessa corrente doutrinária Magalhães Noronha: “Reconhecemos, entretanto, que na prática é difícil aceitar
solução unitária para todos os casos. Será justo punir quem, por imprudência, pôs sua vida
em perigo e não pôde salvar-se senão
lesando a propriedade alheia?”18
Magalhães Noronha
apresenta o problema, apenas questionando se é justo ou não o
impedimento da alegação de estado de necessidade quando o sujeito coloca-se em perigo
por imprudência. Primeiramente, para concluirmos em quais situações seria justo ou não,
devemos
pensar em duas hipóteses.
Na primeira hipótese, A, que se encontra sozinho na
casa de B, causa
imprudentemente um incêndio. Para salvar-se, quebra
a janela da casa e foge. Na segunda
hipótese, A,
que se encontra
na casa de B, em sua companhia, causa imprudentemente um
incêndio. Ambos percebem a
rápida propagação do fogo e tentam fugir. Como não há mais tempo para saírem pela porta, o único meio de fugirem é pela janela que apenas tem espaço para uma pessoa por
vez. Ao perceber isso, A empurra B,
que cai, bate com a cabeça e fica
desacordado.
A consegue fugir e salvar sua vida,
enquanto B morre.
Desenvolvendo a idéia de Magalhães Noronha que
entende que na prática não é possível aceitar
uma solução unitária para
todos os casos, propomos a seguinte tese: quando se
tratar de colisão de bens jurídicos de
17 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 418.
18 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Volume 1, Introdução e Parte Geral. p. 187.
igual valor (por
exemplo, vida x vida, integridade física x integridade física, patrimônio
x patrimônio), aquele que culposamente causou o
perigo não poderá alegar
o estado
de necessidade; no entanto, quando o bem jurídico protegido for de maior valor (por exemplo, vida x patrimônio, vida x integridade física), aquele que
culposamente causou o perigo poderá alegar a excludente
de ilicitude.
Seguindo essa tese, na primeira
hipótese citada, A poderá alegar estado de
necessidade, tendo em vista que, embora tenha dado origem ao perigo culposamente, para
salvar sua vida, atingiu um bem jurídico de menor valor – o patrimônio
de B. Já
na segunda hipótese, tratando-se de bens de igual valor (vida x vida), A não poderá alegar estado de
necessidade.
Evidente que tal
tese aqui elaborada não se vale de nenhuma previsão legal, porém,
analisando o que
seria mais “justo”
(usando o termo de
Magalhães Noronha)
no caso
concreto, tal solução parece ser a melhor, tendo em vista que na primeira situação não se
exigiria do sujeito entregar sua vida, em troca do patrimônio de outrem, apenas pelo fato de
ter causado o perigo; assim como não autoriza o sujeito, que causou culposamente o perigo,
a sacrificar a vida de
um
inocente para se salvar.
Em
suma,
desse
modo
podemos solucionar os problemas práticos decorrentes
de ambas
as correntes
doutrinárias.
2.3. Inevitabilidade do comportamento lesivo
Para
que se configure o estado de
necessidade, é necessário que o comportamento
lesivo praticado pelo agente,
ou seja,
o fato típico,
tenha sido o único meio existente para
evitar o dano ao bem jurídico. Caso o sujeito pudesse, no caso concreto, evitar
o perigo sem atingir bem jurídico de outrem ou optar
por um comportamento menos gravoso, deve-se desta
forma agir. Quanto a esse
requisito, vale
destacar as
palavras de Damásio de Jesus:
Se o conflito de interesses pode ser resolvido por outra maneira, como pedido de
socorro a terceira
pessoa ou fuga, o fato não fica justificado. É preciso que o único
meio que se apresenta ao sujeito para
impedir a lesão do bem jurídico seja o
cometimento do fato lesivo. Se o perigo pode ser afastado por uma conduta menos lesiva, a prática do
comportamento mais lesivo não configura a excludente. 19
Podemos verificar
que, segundo Damásio
de
Jesus,
se
o sujeito
praticar uma conduta mais lesiva, quando podia cometer uma menos lesiva, este não poderá
argüir o
estado de necessidade como causa de exclusão da ilicitude.
No mesmo sentido, orienta-se Magalhães Noronha quando diz que é exigível do agente “o emprego do meio menos
nocivo possível:
se
podia apenas ferir
e
matou, não
há,
em princípio,
estado de necessidade.”20
2.4. Direito próprio
ou alheio
A prática de um fato típico poderá
ocorrer para resguardar direito próprio ou de
terceiro, configurando
o estado
de necessidade próprio ou de terceiro,
respectivamente.
Deve-se ressaltar que os interesses em conflito
devem ser legítimos, pois “se a ordem jurídica
nega proteção a um dos bens jurídicos, fica
afastada a ocorrência
do estado
de necessidade” 21. Desta forma, Damásio
de Jesus exemplifica:
O condenado
à
morte, p. ex., não
pode
alegar
encontrar-se em
estado
de
necessidade diante do carrasco, pois o Estado negou proteção a seu direito à vida. O foragido da prisão que furta roupas para não ser reconhecido não pode considerar-se acobertado pela excludente de ilicitude.
22
No estado de necessidade
de terceiro, não se exige qualquer relação jurídica específica entre
o interveniente
(aquele que praticou o fato típico) e
o terceiro (aquele que
teve seu bem jurídico salvo), como por exemplo, relação de parentesco, amizade ou subordinação entre o
interveniente e o terceiro
necessitado.23
19 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 421.
20 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal: Volume 1, Introdução e Parte Geral. p. 186.
21 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p.
417.
22 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 417.
23 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 417.
2.5. Inexigibilidade
de
sacrifício do bem
Outro
requisito do estado de
necessidade é a
inexigibilidade de sacrifício do bem.
Podemos identificar nesse requisito a presença do princípio da razoabilidade, tendo em
vista que o legislador determina examinar se era ou não razoável exigir-se o sacrifício do bem
ameaçado e
que foi resguardado pela
prática do fato típico.24
Para definir quando seria razoável ou não exigir o sacrifício do bem, devemos relembrar
que o legislador, ao adotar a teoria unitária, entende
que age em estado de
necessidade tanto o sujeito que, para proteger seu bem jurídico, viola outro de
menor valor, assim como o sujeito que
sacrifica outro de igual valor.
Portanto, em ambos os casos não é
razoável
exigir-se o sacrifício
do bem ameaçado.
Acerca desse requisito, devemos mencionar as
lições
de Assis Toledo:
O bem de
maior valor prefere
ao
de menor valor. Não há, entretanto,
critérios milimétricos para o balanceamento dos bens em conflito.
A lei fala em sacrifício
“não
razoável”.
O
princípio
da
razoabilidade
preside, portanto, a opção. (...) Havendo identidade ou equivalência entre os bens, o sacrifício de qualquer deles, para salvação
do outro, estará autorizado, como
já
se disse. 25
Se o sacrifício do bem era razoavelmente exigível, ou seja, quando o bem protegido
for de maior valor em relação ao sacrificado, o sujeito
que praticou o fato típico não poderá
argüir a excludente de ilicitude,
pois o estado de necessidade não estará configurado.
Contudo, o Código Penal prevê no artigo 24, parágrafo segundo, a seguinte minorante:
“Embora seja
razoável
exigir-se o sacrifício
do direito ameaçado, a pena
poderá
ser reduzida de
um a dois terços”.
24MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI; Renato N.. Manual de Direito Penal: Parte Geral, Volume 1. 27ª ed..
São Paulo: Atlas, 2011. p. 165.
25 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. p. 187.
2.6. Dever legal de enfrentar o perigo
O parágrafo
primeiro do artigo 24 do Código Penal prevê
que “não pode alegar
estado de necessidade quem tinha
o dever legal de
enfrentar o perigo.” Portanto, só poderá
argüir estado de
necessidade como justificante, quem não tem o dever previsto em lei de
enfrentar
o perigo.
Nelson Hungria conceitua a expressão dever legal: “Dever legal é somente
aquele que o Estado impõe, normativamente, em matéria de
serviço de utilidade pública ou na
defesa de interesse da comunhão
social.” 26
Damásio de Jesus elenca determinadas situações em que
o sujeito tem o dever legal,
decorrente da
sua profissão, de enfrentar o perigo e, conseqüentemente, deve sofrer o risco
de sacrificar
o seu
bem jurídico:
a) o militar
não
pode invocar risco à
sua vida ou integridade
corporal para
fugir às operações bélicas; b)
o funcionário público da
repartição sanitária não pode
escusar-
se de atender vítimas de uma epidemia; c) o policial não pode deixar de perseguir
malfeitores sob o pretexto
de que estão armados
e dispostos a resistir; d) o bombeiro não pode deixar de subir a um edifício incendiado
invocando a possibilidade
de sofrer queimaduras; e) o capitão do navio não pode salvar-se à custa da vida de um
passageiro. 27
Há
limites para
essa imposição legal, pois não se exige desses profissionais comportamentos
heróicos ou que se tornem um mártir. Portanto, no caso concreto, se o bombeiro, que se encontra
num edifício em chamas, observar que há alta probabilidade de
que ele venha a
morrer
antes mesmo de salvar uma pessoa, poderá abandonar
esta, que de qualquer
modo viria a morrer
– pois o auxílio seria inútil, e se salvar.
Obviamente, não podemos também exigir que
aquele que tem
o dever legal de
enfrentar o perigo coloque em risco bem jurídico próprio de maior valor para proteger bem
jurídico de outrem de menor valor. Podemos citar
26 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal: vol. 1, Tomo II. p. 280.
27 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I:
parte geral. p.
419.
as palavras de João Mestieri: “Existirá,
ainda, uma limitação baseada no
critério de proporcionalidade: não se
exigirá, por exemplo, dos bombeiros, que
arrisquem a própria vida no combate
a incêndio em que se objetiva
exclusivamente
a salvaguarde de bens
patrimoniais.”28
2.7. Conhecimento da situação de
estado de necessidade
Não poderá alegar estado de
necessidade como excludente
de ilicitude,
aquele
que não atuou com a finalidade
de salvar o bem jurídico, pois desconhecia a situação de
perigo
que se encontrava.
Imaginemos a situação em que
um sujeito furta um carro. Posteriormente,
tem conhecimento que no estacionamento onde cometeu o fato típico tinha uma bomba prestes
a explodir. Não poderá
argüir a justificante, pois não atuou com a finalidade de salvar seu
bem
jurídico (vida),
tendo em vista que não tinha conhecimento da
situação de perigo
existente. Em relação a essa situação descrita, podemos mencionar as lições de Assis Toledo:
O mero acaso, ou a coincidência ocasional
de fatores desconhecidos, não basta
para justificar um fato previsto em lei como crime e realizado com propósitos criminosos. Embora não se exija do autor do fato
necessário a exata consciência da licitude do seu ato, exige-se que, pelo menos, se tenha motivado pelo desejo de
salvação do direito
em perigo.29
Em suma, o sujeito deve ter “ciência da situação fática, vontade
ou ânimo (animus
salvationis) de salvar o bem ou direito em perigo. O agente, além do conhecimento dos elementos objetivos da justificante,
deve atuar com o fim, com
a vontade de salvamento.” 30
28 MESTIERI, João. Manual de Direito Penal, volume I. p. 150 e 151.
29 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. p. 184.
30 PRADO,
Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: volume 1, Parte Geral. 3ª ed.. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002. p. 322.
III.-Furto Famélico
3.1. Conceito e
histórico
Em decorrência das dificuldades econômicas em que
se encontra, pode ocorrer do sujeito praticar um fato típico como o único
meio para saciar uma necessidade extrema,como
a fome.31
O
furto de alimentos
para saciar a fome é denominado furto
famélico.
José
Henrique Pierangeli
o define: “furto
famélico é o praticado por quem,
em situação
de extrema
penúria, é compelido
pela fome (coatus fame), por uma necessidade urgente e inadiável de
se alimentar (propter necessitatis
vim)...” 32.
A Constitutio Criminalis Carolina, promulgada em 1532 pelo soberano Carlos V do
Sacro Império Romano-Germânico, previa expressamente no seu artigo 166, a
hipótese de não aplicação da pena ao agente que praticasse furto de alimentos pela necessidade de saciar fome própria ou da família. O nome que se dava a essa excludente era
“extrema necessidade”.33
Na França, o Código Napoleônico não previa o furto famélico
como excludente da ilicitude,
ou seja, como caso específico de estado de
necessidade, o que gerou debates.
Porém, foi reconhecida a isenção de pena em decisão do Tribunal de Chateau-Thierry, sob
o fundamento de que a fome
31 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: volume 1, Parte Geral. p. 335.
32 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: volume 2, Parte Especial. 2ª ed.. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 211.
33 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal Comentado.
p.
74.
é suscetível de privar parcialmente a todo
ser humano do livre- arbítrio e reduzir a noção do bem
e do mal.34
O Código Penal suíço, em seu artigo 138, possibilita
a concessão do perdão judicial, quando o agente atua para satisfazer uma necessidade, desde que se trate de coisa de pequeno valor.
Portanto, nesse caso, o juiz pode deixar
de aplicar a pena.35
O Código Penal brasileiro não prevê, na Parte
Especial, nenhum caso específico de
estado de necessidade relacionado
ao furto famélico.
Porém, a doutrina tem admitido a aplicação
da regra geral do
estado de necessidade,
prevista no artigo
24, nos
casos em que o
agente furta alimentos, devido à situação de extrema fome e necessidade urgente de se
nutrir para sobreviver.
Damásio de
Jesus ao elencar diversas situações em que o sujeito pratica
um fato
típico em estado de necessidade, cita
o seguinte exemplo:
…subtração de alimentos para
salvar alguém de morte por inanição”36. Tal hipótese nada mais é do que o denominado
furto famélico.
Do mesmo modo, João Mestieri afirma: “O furto famélico é exemplo de estado de necessidade; e.g., os furtos ocorridos em supermercados por pessoas indigentes,
com a finalidade de sobrevivência37.
Pacificamente
podemos afirmar que
o agente que
praticou o denominado furto famélico, poderá alegar que
agiu em estado de necessidade, desde que preenchidos os
requisitos desta
excludente de ilicitude.
Portanto, aquele que praticar
fato típico,
suprimindo bem jurídico de menor
valor (patrimônio
alheio), para salvar bem jurídico de
maior valor (vida) de perigo
atual (morte por inanição), age em
estado
de necessidade.
34 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: volume 2, Parte Especial.
p. 212.
35 PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: volume 2, Parte Especial.
p. 212.
36 JESUS, Damásio de. Direito Penal, volume I: parte geral. p. 415.
37 MESTIERI, João. Manual de Direito Penal, volume I. p. 150.
Na grande maioria dos casos de furto famélico, o autor não responderá pelo crime
em
decorrência do princípio da
insignificância, também conhecido como princípio da bagatela. Em outras palavras, apesar de ter praticado o fato típico formal, a
lesão ao patrimônio
da vítima é tão insignificante
que está excluída a tipicidade conglobante
ou material da conduta. Porém, deve-se ressaltar que o princípio da insignificância não tem previsão específica no ordenamento jurídico brasileiro, sendo apenas uma construção
doutrinária e normalmente
aplicada pelos Tribunais. Portanto, não raro se vê
decisões que não acatam o princípio da insignificância, como podemos observar nos seguintes julgados
do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
(...) Quanto a aplicação do princípio da insignificância, é criação da
doutrina não aceita pela legislação pátria. De
se dizer que o furto de bagatela constitui crime, já que fático típico, atuando o pequeno valor do
objeto material somente
na fixação da
pena,
ex vi legis do
art. 155, parágrafo 2º, do Código Penal.38
Apelação. Furto Noturno. Atipicidade da conduta.
Crime de bagatela. No
ordenamento jurídico brasileiro, o princípio
da insignificância
não pode ser
invocado para afastar a tipicidade.39
3.2. Doutrina e jurisprudência acerca do preenchimento de determinados requisitos
da justificante no caso
concreto
Como já dito
anteriormente, evidente
que
só
poderá ser
alegado
o
estado de necessidade como causa excludente
de ilicitude se no caso concreto estiverem preenchidos todos os requisitos dessa justificante. Primeiramente, para que esteja configurado o estado de necessidade, o agente deve praticar o furto de alimentos para salvar sua vida (ou de
terceiros) de perigo atual.
38
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Habeas Corpus n° 3531/2009, Relatora Desembargadora FatimaClemente, Rio de
Janeiro, 2
de
junho de 2009.
39 Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Apelação n° 2005.050.00022, Relator Desembargador Manoel Rebêlo dos Santos, Rio de Janeiro, 24 de maio de 2005.
O furto deve ter como finalidade saciar fome atual ou iminente, que poderá
resultar na sua morte ou
seqüelas em decorrência
da inanição. Tendo em vista
tal requisito, Maximiliano Führer afirma: “é injustificável a subtração de coisas para
estocagem ou consumo
posterior, já que a referida fome é imediata.” 40
No mesmo
sentido,
o extinto
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo já decidiu:
Considera-se em estado de necessidade quem
pratica o fato para salvar-se de
perigo atual, (...). Nenhuma
das
condições preenche a apelante, com a simples menção de que possui família
numerosa e esposa doente
mental. Se a família estivesse
passando extrema
necessidade – como afirmou – bastar-lhe-ia salvar-se do perigo atual e iminente, isto é, a morte por fome. Nesse caso, teria simplesmente furtado quantidade pequena, cerca de 1 kg
de arroz. Não foi o que fez o réu. Furtou
cerca de 25 kg, consumiu cerca
de 5
kg durante a semana, até ser o restante encontrado. Como se vê, se houve perigo atual a direito seu – não morrer de fome –
o apelante procurou furtar
quantidade tal que lhe
resguardasse de perigo futuro, pois a
quantidade furtada daria (considerado o consumo de 5 kg de arroz por semana)
para mais quatro semanas. Ora, o estado de necessidade só é excludente
quando o perigo é atual, e não
futuro. 41
De fato, no caso em tela, não há como reconhecer que o agente atuou em estado de
necessidade, tendo em vista
que, embora sua família seja
numerosa como alegado, furtou quantidade
tamanha que poderia alimentá-lo por
mais de um mês. Portanto, não está preenchido o primeiro requisito da
justificante que é praticar o fato típico a
fim de salvar bem
jurídico de perigo atual.
40 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal Comentado.
p.
375.
41 Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Apelação, Relator Bonaventura Guglielmi. In: FRANCO, Alberto
Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial: volume 1, Parte Geral. 7ª
ed..
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 381.
Porém, devemos analisar situações como essa com bastante cautela. Supondo que
o agente tivesse furtado quantidade de alimentos equivalente para saciar sua fome e de sua família por uma semana ou alguns dias, a decisão seria outra? O sujeito
teria agido para
salvar sua vida e de seus entes queridos de
perigo atual ou ainda a decisão correta seria
também não aplicar
o estado de necessidade, tendo em vista
a quantidade de alimentos
furtada excederia a necessidade para salvá-lo
da
fome atual?
Certamente,
o sujeito que recorreu à prática de um fato
típico para salvar sua família
da fome, passa por situações econômicas tão difíceis que não poderá tão brevemente (em uma semana ou alguns dias) ter
como comprar alimentos para
salvá-los novamente da
inanição. Entender que o agente só poderá alegar estado de necessidade na prática de furto famélico, quando subtrair quantidade de alimentos suficientes para saciar sua fome atual,
ou seja, a fome que sente no exato dia em que foi praticado o delito, aparenta ser uma forma
de restringir ao
máximo
a aplicabilidade da excludente
de ilicitude.
De fato, a aplicação do estado de necessidade deve ser
restrita às situações em que
o perigo é atual (ou iminente, como entende a doutrina
majoritária). Porém, é razoável
entendermos que aquele que
está desempregado há
meses, não consegue de forma
alguma obter
recursos financeiros
para comprar o
mínimo
de comida, age em estado
de necessidade caso venha a furtar quantidade de
alimentos suficientes para
saciar a fome
atual de seus filhos, além da fome iminente
que fatidicamente terão
nos próximos dias.
Outro requisito que
deve ser analisado, a
fim de ser verificar se
está caracterizado o estado de necessidade, é o fato do perigo não ter
sido provocado voluntariamente pelo agente. Como é
sabido, qualquer
ser humano necessita
freqüentemente se
alimentar, caso contrário, por
questões fisiológicas,
virá
a morrer por inanição. Portanto,
deve-se analisar
se o
sujeito se colocou em tal situação de perigo voluntariamente,
ou seja,
se dolosamente (ou ainda culposamente, seguindo o entendimento de parte da doutrina) o sujeito agiu de
certa
forma que provocou o perigo de morrer por inanição.
Evidente que aquele
que passa
por extrema dificuldade
econômica, que há
meses procura por trabalho
e
de
todas
as formas
suplicou
por
doações,
não se colocou
dolosamente em situação de perigo, ou seja, sua fome não é decorrente de sua vontade.
Suponhamos a situação em que uma pessoa, que
tem recursos suficientes para sua subsistência, revoltada com os políticos de seu país, resolve protestar fazendo greve de
fome em frente à prefeitura da cidade. Passa dias neste local, sem nada comer. Até que
certo dia, compelido pela fome e necessitando se alimentar urgentemente, caso contrário
não irá sobreviver,
corre para o
mercado mais próximo e rouba um
pão.
Nesse caso narrado, o perigo foi voluntariamente provocado pelo sujeito, pois ao
passar dias sem comer, o sujeito dolosamente se colocou em situação de perigo. Portanto,
não
poderá alegar que ao furtar o pão do mercado, agiu em estado
de necessidade. Logo,
sua conduta é típica e ilícita.
Do mesmo modo, aquele que escolhe pela ociosidade, ou seja, por sua vontade
não trabalha para
obter recursos para
a própria subsistência, não poderá alegar a descriminante caso
venha a furtar alimentos
para salvá-lo
da inanição.
O Tribunal
de Justiça do Mato Grosso do Sul já decidiu que não se pode alegar o estado
de
necessidade, “sem-terras”
que
subtraem
alimentos,
tendo
em vista
que
provocaram a situação de perigo, pois sabiam que faltariam alimentos para a subsistência
do grupo:
“Não caracteriza a excludente
de criminalidade
do estado de necessidade a conduta
de acampados “sem-terra”
que subtraem carga de caminhão contendo gêneros
alimentícios e produtos de
limpeza e higiene, pois os próprios agentes,
voluntariamente, criaram a situação de necessidade, eis que cientes de que faltariam alimentos para o sustento do
grupo.” 42
42 Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Apelação n° 49.107-2/01, Relator Desembargador Rubens Bergonzi Bossay, Campo Grande, 22 de setembro de 1999.
O relator, deste
julgado,
Rubens Bergonzi Bossay fundamenta
sua decisão afirmando que os “sem-terras” provocaram a
situação de perigo ao não exercerem trabalho
honesto. Ao agirem
dessa
forma, sabiam
que faltariam
alimentos para
a
própria
subsistência. O relator ainda
afirma que poderiam ter
evitado o perigo, se
deixassem o
acampamento onde se encontravam e procurassem trabalho para sustentá-los, como podemos
observar na parte
do seu voto destacada abaixo:
Assim é que todos os
acusados e as testemunhas ouvidas deixam claro que, sendo
um bando de pessoas, conhecidos por
“sem-terra”, acampado
às margens da rodovia
que liga Tacuru a Sete
Quedas, passavam, como passam diuturnamente, por necessidades
básicas
de alimentação,
falta de higiene, vida precária,
quase subumana e estavam há vários dias sem qualquer alimentação que pudesse lhes saciar a fome, não restando outra alternativa a não ser saquearem o caminhão da firma vítima, para se apropriarem de gêneros alimentícios, como em outras
oportunidades assim o fizeram,
não sendo uma atitude isolada e esporádica (...).
É inegável que os acusados encontravam-se espontaneamente acampados no dia dos
fatos narrados da denúncia. Tinham ciência de que, sem o exercício de trabalho honesto, certamente iriam ficar sem os
gêneros alimentícios
de
primeira
necessidade; podiam evitar
a situação aflitiva, bastando
que deixassem o acampamento
e
procurassem trabalho, não
obstante pudessem
continuar seus
objetivos de reformular
a política fundiária do país. 43
É necessária também a inevitabilidade do comportamento lesivo, ou seja, que
o comportamento lesivo praticado pelo agente, tenha sido o único
43 Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Apelação n° 49.107-2/01, Relator Desembargador Rubens
Bergonzi Bossay, Campo Grande, 22 de setembro de 1999
meio existente para salvar
o bem jurídico de perigo. No caso concreto, se
o sujeito puder evitar
o perigo por mais de um meio, deve
optar por um comportamento menos
gravoso.
Desse modo, aquele que opta por
roubar alimentos,
não poderá alegar que agiu em
estado de necessidade, pois poderia optar por um comportamento menos gravoso que é o furto. Nesse sentido já julgou
o Tribunal de Alçada Criminal
de São Paulo:
A excludente do estado de necessidade
não se compadece com a prática de
roubo, pois, caso verídica a situação extrema, bastaria
o furto para afastá-la, não se admitindo
dano mais extenso
ou mais intenso.44
Rogério
Greco afirma que o sujeito
deve
subtrair alimento
que cause menos
prejuízo, ou seja, havendo várias opções de alimentos para
subtrair, deve optar pelo menos lesivo ao patrimônio da vítima:
(...) o agente deve subtrair patrimônio
alheio (alimento) que cause menos prejuízo,
uma vez que, havendo alternativa de subtração, deve optar por aquela menos lesivo à vítima, pois, caso contrário, não poderá beneficiar-se com a causa de justificação
em
estudo. Assim, aquele que, no interior de um supermercado, podendo subtrair
um saco de feijão, seleciona uma peça de bacalhau, por mais que tenha necessidade de se alimentar, não
poderá
ser beneficiado
com o raciocínio do estado
de
necessidade, pois a escolha do bem a ser subtraído deve recair sobre aquele que traga menor
prejuízo à vítima.45
De fato, o sujeito deve optar pelo comportamento menos lesivo e ao furtar, ao invés
de roubar ou cometer
outro crime ainda mais grave, ele já preencheu tal requisito. Portanto, tal entendimento de que o agente deve optar pelo alimento menos custoso,
aparenta ser uma forma de reduzir ao máximo a aplicabilidade da excludente de ilicitude.
Ora, estamos tratando de
44
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Apelação n° 687.345-5, Relator Haroldo Luz, São Paulo, 3 de
outubro de 1991.
45 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal:
Parte Especial, volume III. 5ª ed.. Niterói,
RJ: Impetus, 2008.
p. 42
situações que, muitas vezes, o agente não tem a menor capacidade de auferir se o alimento, o qual vai subtrair a
fim de saciar sua fome e tirá-lo da situação urgente que se encontra, é menos
custoso ou não do que outros alimentos.
Exigir do sujeito que
está num estado de
fome extrema
e,
conseqüentemente, em perigo de vir a morrer por inanição, que aufira os preços do supermercado para
não
subtrair certo alimento por ter valor econômico maior
do que outro, é uma exigência
totalmente
desumana. A idéia humanitária e de solidariedade, presente na possibilidade de aplicação do estado
de necessidade como causa de excludente de ilicitude
nos casos
de
furto famélico, é totalmente rompida caso venha a se exigir que se subtraia sempre o
alimento menos custoso para a vítima. Tal exigência tem a finalidade meramente de prestigiar
o patrimônio em detrimento do bem jurídico de
maior valor que é a vida. Como dito anteriormente, o que não se pode admitir é o
roubo, pois nesse caso realmente o agente
estaria optando por um comportamento
mais gravoso.
3.3. Res furtiva
A subtração de coisa alheia móvel só poderá ser tida como furto famélico, se no
caso concreto, a res furtiva for efetivamente alimento,
destinado unicamente a saciar a
fome do agente ou de seus familiares, a fim de salvá-los da situação extrema em que se encontram.
Portanto, a subtração de coisas supérfluas, não
necessárias para a sobrevivência, não
caracteriza o furto
famélico. Nesse
sentido,
destacam-se
as palavras do promotor Cleber Rogério Masson:
Em casos excepcionais,
admite-se
a
prática
de
um
fato típico
como medida inevitável, ou seja, para satisfação de necessidade estritamente
vital que a pessoa,
nada obstante seu empenho, não conseguiu superar de forma lícita. (...) quando se apodera de bens
supérfluos
ou em quantidade exagerada, afasta-se a justificativa.46
46 MASSON,
Cleber Rogério. Direito Penal
Esquematizado: Parte Geral, volume 1. 5ª ed.. São Paulo:
Método,
2011. p. 396.
Isso não significa que nunca poderá ser admitida a alegação de que agiu em estado de necessidade, caso venha
a subtrair outras mercadorias que não sejam propriamente
alimentos,
como bem observa Maximiliano
Führer:
No Brasil a caracterização do furto famélico é doutrinária e baseia-se no bom
senso, não sendo absurdo admitir
o benefício nas subtrações para saciar
as necessidades corporais primordiais, como
a
água
para
beber, o cobertor
para proteger o do
frio intenso e o medicamento para passar a dor.47
Nessa ótica, destacam-se duas decisões que admitiram a caracterização do estado de necessidade em situação em que
não
ocorreu propriamente furto de alimentos, porém, a conduta típica
visava salvar bem jurídico (vida ou integridade física) de perigo atual ou
iminente:
Atua em estado de necessidade e, pois, não comete crime (artigo. 23, I, do CP), o sujeito que, suspenso o
fornecimento
de
energia elétrica à sua residência por
falta de pagamento (e
não
tendo condições de satisfazer o débito com a empresa concessionária, uma vez
responsável pelo sustento de família numerosa e carente de recursos), procede a ligação clandestina da rede pública para pôr
em funcionamento
aparelho de inalação (vaporizador), com o intuito de tratar de filho de tenra idade acometido
de enfermidade grave (rinite infecciosa e bronquite).48
Estado de necessidade. Funcionário de confiança
de empresa
que lança mão de
recursos sob sua responsabilidade a
fim de acudir despesas de tratamento de sua saúde em razão de grave moléstia,
age
em estado de necessidade. 49
47 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal Comentado.
p.
375.
48 Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Apelação n° 1.201.111/3, Relator Carlos Biasotti, São Paulo, 17 de agosto de 2000.
49
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Apelação n° 294.859, Relator Albano Nogueira. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial: volume 1, Parte Geral. 7ª ed.. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 379.
Como bem observa Maximiliano Führer, para que esteja caracterizada a justificante,
é necessário que se comprove que o produto foi furtado com a efetiva intenção de saciar a
fome ou salvar o bem jurídico de outro perigo, como a sede, frio, doença grave.50 Quem
furta sem este animus
e sim com a finalidade de vender a res furtiva para
obtenção de vantagem econômica, não age em estado de necessidade, como bem decidiu o Tribunal
de Alçada do Rio Grande do Sul:
Furto famélico
– Estado de necessidade – Descaracterização – O reconhecimento
do estado de
necessidade
impõe prova convincente
dos requisitos contidos na definição legal do art. 24 do CP,
tornando-se inviável quando, inocorrente esta, o agente, agricultor apto para
o trabalho e sem indicação de extrema miserabilidade,
subtrai um saco de feijão de quase 60 kg, para logo a seguir vendê-lo, sem usá-lo,
mesmo parcialmente, para a própria
alimentaçao 51
No entanto, não devemos deixar de mencionar a nobre
decisão do Juiz Albano Nogueira, que veemente defende a caracterização do estado de necessidade nos casos de
furto famélico, inclusive
quando o agente revende o objeto furtado com a
finalidade de utilizar o dinheiro
obtido para comprar alimentos
que possam saciar sua fome:
Tais requisitos se encontram configurados no saco sub
examen. O perigo atual e
inevitável é a fome, em face da qual poderá o agente sucumbir. Este perigo não foi
provocado por ele, porque seu desemprego é fato alheio à sua vontade. Não é razoável, finalmente, que se deixe sucumbir para não infringir a lei. Cabe refutar, enfim, a alegação de
que o
acusado não tinha fome, porque afirmou pretender revender
os tabletes subtraídos para
conseguir dinheiro
vivo. A revenda, no entanto,
deveria
ter a mesma finalidade – saciar a fome.
50 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto; FÜHRER, Maximilianus Cláudio Américo. Código Penal Comentado. p. 375.
51 Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, Apelação,
Relator Gonzaga Pila Hofmeister. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial: volume 1, Parte Geral. 7ª
ed..
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 387.
E é forçoso convir que,
transformando o produto da subtração em dinheiro, o agente poderia adquirir um
tipo
de alimentação mais satisfatório que chocolate. A um
estômago vazio satisfaz mais
um simples sanduíche
de mortadela que um sofisticado tablete de chocolate.”52
IV - Estado de Necessidade e Tortura: ticking bomb
scenario
Suponhamos um caso em que as autoridades policiais tenham conseguido prender
alguém que tenha plantado uma bomba que explodirá dentro de algumas horas. Porém, as
autoridades não têm conhecimento de onde se encontra
a bomba. Para obter as informações e, deste modo, salvar inúmeras vidas, os policiais poderiam torturar o terrorista sob a
alegação
de que agiram em estado
de necessidade?
Essa situação hipotética descrita é denominada de ticking bomb scenario. É uma
das questões que mais tem gerado controvérsias entre
penalistas e
internacionalistas, que
divergem se seria
lícito e
moralmente legítimo torturar alguém para
obter informações, mesmo em circunstâncias
extremas.
Os internacionalistas entendem que a proibição de tortura é uma
norma de jus cogens, ou seja, é uma norma cogente de direito internacional e, por isso, jamais pode ser
violada. Por
mais extrema que seja
a circunstância, como
é o caso
do
ticking
bomb
scenario, essa norma
não pode ser excepcionada. Esse entendimento é justificado através de argumentos legais e de ordem moral. Diversas convenções e tratados internacionais de Direitos Humanos dispõem acerca da vedação
à tortura.
52
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Apelação n° 281.887, Relator Albano Nogueira. In: FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial: volume 1, Parte Geral. 7ª ed.. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 381.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos53 de 1948, a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos54 (também conhecido como Pacto de San José da Costa Rica) de 1969,
a Convenção contra a Tortura e
Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes55, de 1984, dispõem que ninguém pode
ser
submetido a tortura e
tal proibição não pode ser violada em qualquer hipótese. O artigo 1º da Convenção contra a Tortura de 1984 prevê que qualquer ato de violência física
ou mental infligido intencionalmente a uma pessoa para obter dela, ou de terceira pessoa,
informações ou confissões é considerado como
tortura.
A Association for the Prevention of Torture56 expõe argumentos de ordem moral que repudiam
a prática da tortura e também afirma, justificadamente, que este não é um meio
eficaz de se obter informações. O argumento moral mais relevante é que a tortura
viola a dignidade da pessoa humana. Certas formas de tratamento, como o genocídio, escravidão e a
tortura, são totalmente incompatíveis com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Logo, a prática desses atos em nenhuma circunstância será justificada, ou seja,
são absolutamente proibidas
pelo direito internacional.57
Na doutrina
pátria, podemos destacar as lições de Luiz Regis Prado que entende que
o estado de necessidade só poderá ser alegado quando a conduta do agente não violar a
dignidade da pessoa
humana:
53 A Declaração Universal dos Direitos
Humanos foi aprovada
pela Resolução 217,
na 3ª Sessão Ordinária da
Assembléia Geral da ONU, em Paris, em 10/12/1948.
54 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) foi adotada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José da Costa Rica,
em
22/11/1969. Foi ratificada pela República Federativa do Brasil e promulgado pelo Decreto 678 de 06 de novembro de 1992.
55 A Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes foi adotada pela Resolução 39/46 da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10/12/1984. Foi ratificada pelo
Brasil e promulgada pelo Decreto 40 de 15 de fevereiro de 1991.
56 A Association for the Prevention of Torture é uma organização não-governamental fundada pelo suíço e advogado Jean-Jacques Gautier em 1977.
57 Association
for the
Prevention
of
Torture. Defusing
the Ticking
Bomb Scenario.
Disponível
em <http://www.acat.ch/__/frontend/handler/document.php?id=460&type=42>. Acessado em 10 de outubro
de
2011. pg 13.
De conseguinte, é de todo aconselhável restringir o campo de abrangência do
estado de necessidade justificante: este
será
uma causa
de justificação quando o mal causado for menor que
o evitado, desde que a conduta realizada não implique uma infração grave do respeito devido à dignidade
da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana, como já destacado,
possui significado constitucional,
enquanto fundamento da ordem política e da paz social, figurando
como um princípio material de justiça, de validez
a
priori, que represente um limite do Direito positivo. 58
O ticking bomb scenario
parte do pressuposto que aquele que
foi detido pelas
autoridades efetivamente foi quem plantou a bomba
ou tem informações relevantes sobre esta.
Porém, essa situação hipotética
muitas vezes não se verifica no mundo real. No caso
concreto, grande parte das vezes não se terá a total certeza de que a pessoa, a qual recai a suspeita, realmente tem informações que possam evitar a explosão da
bomba. Logo,
permitir a tortura para obtenção de informações faz surgir o perigo de que pessoas,
que não têm nenhuma
ligação com o ataque criminoso
que está para acontecer, sejam torturadas
com base em suspeitas equivocadas, como
ocorre nos casos
de erro de identidade.59
Por outro lado, os penalistas entendem que o estado de necessidade
estaria caracterizado, tendo em vista que
há uma situação de perigo e
os bens jurídicos violados
(integridade física e dignidade) são de menor valor em relação aos bens jurídicos salvos (a vida de diversas pessoas). Se é admissível o
estado de necessidade como causa excludente de ilicitude de homicídio, não haveria razão para não admiti-lo como justificante do crime
de tortura, que se trata de um crime
como outro qualquer.
58 PRADO,
Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: volume 1, Parte Geral. 3ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 320 e 321.
59 Association for the Prevention of Torture. Defusing the Ticking Bomb Scenario. p. 7 e15.
Alan Dershowitz, jurista americano
e professor da
Universidade
de Harvard, defende a expedição de mandados judiciais de tortura (torture warrants) nos casos em que este é o último recurso para obter informações, que podem evitar um ataque terrorista e
salvar inúmeras vidas.60 Tal argumento
se baseia no fato de que, embora os países sejam
signatários de tratados e convenções internacionais que proíbem a tortura, assim como as
leis internas também vedam essa conduta, na prática, os Estados
secretamente violam tais
normas.
Portanto, tendo em vista que de qualquer forma os Estados violam a proibição
absoluta à tortura, o jurista
americano sugere a criação de
um mecanismo o qual permite os
juízes da Suprema Corte,
assim como o próprio Presidente do país, expedir mandados de tortura, aprovando a prática
desta, caso estejam convencidos no caso concreto que esse método poderia frustrar um
ataque iminente.
Dessa forma, segundo Dershowitz, a
tortura seria regulada, com registros de
responsabilização, padrões e limitações que teriam que ser
observados no uso desse
método61. Aquele que expediu o mandado teria que demonstrar a necessidade
factual de administrar
essa técnica, se
responsabilizando quando não houver fundamento. Do
mesmo modo, os torturadores seriam responsabilizados quando extrapolassem os limites impostos normativamente. Assim sendo, segundo o jurista, o Estado estaria praticando a tortura, em
circunstâncias extremas com o intuito de salvar
vidas, de forma transparente para
toda a sociedade e com responsabilidade.
Os
internacionalistas rebatem a possibilidade de legitimação do uso da tortura,mesmo nas circunstâncias mais extremas e com o intuito de salvar inúmeras vidas, ainda que
seja através de controle judicial e praticada
60 CNN International. Dershowitz: Torture could be justified. Disponível em
<http://edition.cnn.com/2003/LAW/03/03/cnna.Dershowitz/>. Acessado em 23 de outubro de 2011.
61 Alan Dershowitz and the "Ticking Bomb" Scenario. Disponível em
<http://torture.stanford.edu/2007/05/alan_dershowitz_and_the_tickin.html>. Acessado em 23 de
outubro
de
2001
por autoridades estatais profissionais nesse método.
O diretor executivo da Human Rights Watch62,
Ken Roth, contrapõe veemente a possibilidade de expedição de mandados
de tortura, pois o fato de que a norma cogente, que a
proíbe em qualquer hipótese, é
violada
não
significa que se possa legitimar o uso desse
método em determinadas situações de perigo
iminente.63
A Association for the Prevention of Torture afirma que legitimada a tortura
em casos excepcionais,
inevitavelmente, o uso desse método será cada
vez mais difundido.
Na prática, cada vez mais será
permitido o uso da tortura em diversos outros casos diferentes daquela situação que
justificou originariamente a legitimação deste método. Desse modo, a prática difundida gerará a dependência da tortura como técnica de investigação e, assim, a
exceção se
tornara regra.64
Em 2002, ocorreu um caso na Alemanha que gerou debates acerca desse tema. O
filho de onze anos de um executivo de
um banco alemão foi seqüestrado. Foi exigido um
milhão de euros para a sua libertação. Logo após ter sido pago o resgate, a polícia prendeu o estudante de direito Magnus Gaefgen, suspeito
de ser o agente do crime. Durante o
interrogatório, Gaefgen se
recusava a dizer onde
se encontrava o menino e
se ele ainda
estava vivo.
Wolfgang
Daschner, oficial de polícia que liderava a investigação, autorizou seus funcionários, por escrito, a extrair informações por meio da imposição de dor,
sob supervisão médica e aviso prévio. Gaefgen foi avisado,
pelos policiais,
que estava sendo enviado um especialista para
lhe infligir dores, as quais nunca tinha sentido antes, caso continuasse em
62A Human Rights Watch é uma organização não-governamental americana, com sede em Nova York, que
atua
na defesa de direitos humanos.
63 CNN International. Dershowitz: Torture could be justified.
64 Association for the Prevention of Torture. Defusing the Ticking Bomb Scenario. p. 15 e 17.
silêncio. A mera ameaça foi suficiente para induzir Gaefgen a admitir que matou
a criança e revelar o paradeiro do corpo.65 Magnus Gaefgen, comprovadamente, não
sofreu quaisquer agressões físicas. Porém, a
ameaça
psicológica foi suficiente para
os policiais obterem as informações.
O Tribunal Regional de Frankfurt condenou Gaefgen por rapto e assassinato e
condenado à pena de prisão perpétua. Daschner foi condenado por instruir um subordinado
a cometer uma infração penal. Do mesmo
modo, o policial que seguiu as instruções foi condenado por
ameaça. Porém, a pena de
ambos limitou-se a um ano de liberdade
condicional e multa.
Wolfgang
Daschner alegou que agiu em estado de necessidade justificante, ou ainda legítima defesa de terceiro. Tal tese de defesa foi rejeitada
pela justiça alemã, que fundamentou a decisão afirmando que
a conduta de
Daschner infringiu a proibição constitucional absoluta de atos que violem a dignidade da pessoa humana.66 Portanto,
o tribunal alemão seguiu o entendimento dos internacionalistas que repudiam em qualquer situação a
prática desse crime.
Interessante é que, embora, o uso da tortura
não tenha sido necessário, tendo em
vista que a mera ameaça foi eficaz, o tribunal alemão
entendeu que a
simples permissão de uso desse cruel método e o constrangimento infligido pelos policiais já
caracterizou uma
violação
à dignidade humana
e que, portanto,
deveria ser
punida.
65 WARD, Tony. Is
Torture Ever Permissible?. Disponível em <http://www.hmprisonservice.gov.uk/assets/documents/100048A9is_torture_ever_possible.pdf>. Acessado em 12 de outubro de 2011.
66 WARD, Tony. Is
Torture Ever Permissible?.
Embora a pena tenha sido branda, a decisão condenatória do caso Daschner é a
expressão máxima do entendimento de que a
tortura é uma prática cruel e que deve ser evitada, seja
qual
for a circunstância.
Conclusão
A partir da análise
dos entendimentos doutrinários e das decisões jurisprudenciais quanto
à alegação
da justificante nos casos
de furto
famélico,
podemos
concluir
que diversos limites
são impostos para caracterização da justificante no caso concreto.
Entre tais
limites, vale destacar
o entendimento de que o
agente, ao furtar alimentos para
saciar a fome, deve optar pelo alimento menos custoso, a fim de agredir de forma
menos lesiva o patrimônio alheio, tendo em vista que o sujeito
deve optar pelo comportamento
menos lesivo para poder alegar a justificante.
Podemos afirmar que
este limite imposto pela jurisprudência e
parte da doutrina não é razoável, assim como desumano. É inadmissível imaginarmos que o sujeito, que se encontra num estado de extrema fome, tenha que verificar os preços dos alimentos
e
subtrair apenas o menos custoso, caso contrário sua
conduta não estará justificada pelo
estado de necessidade. Além do mais, o sujeito já optou pelo comportamento menos lesivo
ao
apenas furtar. Não teria optado
caso tivesse cometido o crime de roubo ou outro mais grave.
Não raro encontramos decisões que afirmam que as dificuldades econômicas e
financeiras nunca podem justificar o reconhecimento da justificante em crimes contra o patrimônio. Entender
desta forma é negar
o estado de necessidade
nos casos de furto famélico. Impor limites como esse significa
prestigiar e proteger
o patrimônio, ou a ordem
econômica, em
detrimento do bem
jurídico tutelado
de maior valor que é a vida.
A Constitutio
Criminalis Carolina, promulgada em 1532 pelo soberano Carlos V do
Sacro Império
Romano-Germânico, previa expressamente o furto famélico como caso
específico de estado
de necessidade, ao prever a não aplicação da
pena ao agente, que em
situação
extrema, subtraísse alimentos
com o intuito de saciar a fome.
Melhor seria se o legislador brasileiro, a exemplo da Constitutio Criminalis Carolina, tivesse previsto na
Parte
Especial do Código Penal, o furto famélico como caso
específico de estado de necessidade, assim como fez no “aborto
necessário”, em que
o médico está autorizado a praticar o fato típico
se não houver
outro meio de salvar a vida da
gestante,
como previsto no artigo 128, inciso I, do Código
Penal Brasileiro.
Dessa
forma, o ordenamento jurídico brasileiro evitaria qualquer
dúvida quanto à aplicabilidade da
justificante, podendo inclusive impor
requisitos necessários para a caracterização
desta no caso concreto.
O debate mais atual acerca do estado de necessidade se refere
à possibilidade deste justificar a prática do crime de tortura cometido em circunstâncias extremas, como forma de obtenção de informações relevantes que
possam evitar,
por exemplo, ataques terroristas.
Após o atentado de 11 de setembro de 2001
e as notícias de que supostamente os Estados
Unidos da América e seus aliados têm praticado, nos últimos anos, a
tortura como método para obtenção de informações relevantes acerca de futuros ataques terroristas, este debate se
intensificou ainda mais.
Esse tema
coloca em confronto duas posições antagônicas no Direito. Destacamos diversos argumentos
legais e de ordem moral que justificam o entendimento dos internacionalistas de que o uso da tortura não deve ser admitido em qualquer hipótese, pois
além de violar a dignidade da
pessoa humana e infringir os Tratados e
Convenções Internacionais de Direitos Humanos,
não é o método mais eficaz
de
obtenção de informações relevantes, que possam
obstar a prática de um crime.
Por outro, o estado de necessidade pode ser alegado como excludente de ilicitude nos casos de homicídio. Seguindo o raciocínio dos penalistas, como podemos afirmar
que é admissível a alegação de estado de necessidade
como
justificante do crime
de homicídio e ao mesmo tempo proibimos
veemente no crime tortura? A dignidade da pessoa humana seria mais importante que a própria vida?
Em outras palavras, soa estranho admitirmos pacificamente a possibilidade de alguém matar outrem para salvar
sua própria vida, ou de terceiro, como ocorre no caso da
tabula unius capax sempre
citado pela doutrina, enquanto não admitimos a possibilidade de torturar
alguém com o intuito de obter informações, que possam fazer
cessar a situação de
perigo em que se
encontram inúmeras vidas.
Certo
é que esse debate está
longe
de chegar ao fim. Todos os argumentos
analisados,
tanto
por parte dos internacionalistas
e defensores dos Direitos Humanos,
quanto por parte dos penalistas, são razoáveis e bem fundamentados, o que nos leva à
dúvida quanto à melhor
solução a ser tomada.
Porém, deve-se
ressaltar que a violação da norma cogente de
direito internacional,
que proíbe a prática da tortura
em qualquer hipótese, gera inúmeros riscos à sociedade.
Além de violar gravemente a dignidade da pessoa humana, não devemos esquecer que a
história tem nos demonstrado que a prática desse
método de investigação está ligada
aos governos mais opressores
e tirânicos que
já existiram.
Como afirmado por Ken Roth, criar exceções à norma
cogente, que proíbe absolutamente o uso da tortura,
significa afirmar que os fins justificam os meios e esse é
o pensamento básico
do próprio terrorismo. Portanto, ao violarmos
a vedação à tortura, estamos
reafirmando a
falsa ideologia dos terroristas.67
67 CNN International. Dershowitz: Torture could be justified. Disponível em
<http://edition.cnn.com/2003/LAW/03/03/cnna.Dershowitz/>. Acessado em 23 de outubro de 2011.